A gélida comunhão do aparato social como único utensílio da ambição, trampolim de impulsão colossal, desprezo pelo outro, paisagem agitada pelo primado do dinheiro, constitui o desfalecimento – por cansaço da relação de solidariedade, de fraternidade, de amor – de um projecto humano contra a arbitrariedade que hoje campeia num paraíso corrupto cujos turistas são os profissionais do engano assentes em gabinetes de instituições que asseguram o lucro pornográfico contra as massas populares que definham perante a usura do poder.
Há um palco dramático de conflitos numa guerra que opõe a indignação e os indignos; a barbárie do luxo fácil, que promove e sustenta mercados ocultos da terra ao sangue, do esbanjamento de recursos à montra de supérfluos, que redige fronteiras entre os que dilapidam e os que tentam sobreviver nos recantos da agonia, nas traseiras do direito, nas arrecadações da prescrição, no lamaçal escatológico produzido por um grupo de rastejantes que a taxonomia, sabendo o que são, ainda não quis definir.
Guerrilha entre o Sol e o nevoeiro insalubre, entre o fresco e o enlatado, entre a luz e a obscuridade, entre a praia e o cimento, entre o ar e o ácido, entre a natureza e o lixo. Adverte-se o abismo norte-sul, a sujidade provocada pelas desigualdades, pelo desafecto, pela ironia do hipócrita, pela mundialização mercantil de projectado cifrão único que determina o enfraquecimento do poder democrático criando a ilusão de bem-estar de uma colectividade que a história demonstrou que nunca o foi.
Há um diagnóstico escorpiónico, a peçonha cancerígena que se alastra, a metástase do sabujo social, o vírus transformista do traidor, que alimenta a espúria sociedade secreta que faz mover os senhores das nações poluentes.
Enquanto houver a legitimidade do oxigénio, a história não deixará de ser escrita contra a depreciação da humanidade.
Com veias de sangue contra o tráfico dos sacos sanguinários.
Luís Filipe Sarmento, Gabinete de Curiosidades, Lisboa, São Paulo, 2017