Quando comecei minha vida literária, na verdade, nem sei se tenho uma, estava no 3º ano do segundo grau, hoje conhecido como ensino médio aqui no Brasil, e uma professora de português leu minha redação sobre Desemprego no Brasil, e estávamos no ano de 1988. Ela simplesmente leu, elogiou o autor, mas não me entregou o trabalho na frente de todos, apenas em sua sala, pois queria conversar comigo em particular. Em um primeiro momento, achei estranho esse comportamento e ela me perguntara se eu tinha o costume de escrever. Disse que sim, e pediu-me que lha mostrasse meu parco, porém sincero, trabalho poético. No dia seguinte, entreguei-lhe um caderninho, pequeno mesmo, e ela sorriu, agradeceu e explicou que conversaria comigo depois.
É tão bom lembrar disso tudo! Pela primeira vez eu ganhava carinho, que nunca tive na minha família tão quebrada e fria, tão mesquinha e má, e mais importante ainda, de uma desconhecida. Sabe quando ficamos intrigados? Pois é. Eu estava, ao mesmo tempo, feliz e intrigado. Até as marcas em meu corpo dos flagelos, castigos e punições infligidos por minha mãe, naquele momento de carinho dado por minha professora, eu esqueci. Sim, eu os esquecia, mas, neste momento em que escrevo para todos vocês, eu olho para meus cotovelos e meus tornozelos, e as marcas dos espancamentos e agressões físicas estão lá... até hoje, e eu era somente uma criança que, naquela época, sempre pedia uma única coisa de presente: "quebra-cabeças". Como eu amava montar quebra-cabeças, e não interessava a quantidade de peças; quanto mais, melhor. Hoje eu sei o motivo pelo qual eu pedia esse brinquedo: para esquecer as dores no corpo. Bom, agora sabem porque sou tão solitário!
Algum tempo depois, minha professora chamou-me novamente até sua sala e conversamos. Foi então que me segredou que eu deveria fazer Letras, porque gostava de escrever. Eu gelei totalmente! Minha madrinha ficaria louca de raiva se eu escolhesse fazer Letras. Ela queria que eu fosse dentista, mas eu não tinha, e ainda não tenho, a menor vocação/inclinação para a área da saúde. Neste momento, eu estava com 17 anos e morava com meus avós e madrinha desde os 9 anos de idade, resgatado dos maus-tratos maternos antes que eu morresse. No fundo, foi minha avó que me resgatou. Minha madrinha e meu avô sempre foram contra e não me queriam na casa. O olhar de ódio deles era enorme em minha direção e eu tentava, de todas as formas, ficar longe. Minha avó materna (a paterna também era maravilhosa comigo, mas faleceu quando eu tinha 10 anos) foi a única que me amou tão ternamente, mas tão profundamente, que chega a doer a falta que sinto dela.
Antes de sair da sala de minha professora, ela disse ainda, e eu me lembro de cada palavra: apenas sugiro que faça Letras porque você GOSTA de escrever; não disse que te ENTENDERÃO. Eu só entendi o recado muito tempo depois, a duras penas!
Naquele tempo, não tinha o hábito de escrever crônicas ou contos, apenas poesia. Com o passar dos anos, afeiçoei-me por esses dois últimos gêneros. Engraçado que, até hoje, lembro-me de seus olhos esverdeados, de sua voz gentil e, principalmente, de seu nome: Rosângela. Minha querida professora de português do 3º ano. Acho que foi minha única fã e ela enxergou em mim o potencial que nem eu mesmo sabia que tinha. Escolhi o curso de Letras!
Fiz o vestibular para a UFRJ naquele mesmo ano e não passei, porque havia escolhido Odontologia (minha madrinha fora comigo fazer a inscrição e não houve forma de marcar a opção Letras sem que ela visse). Enfim, era praticamente impossível passar para essa carreira naquela época. Hoje, os vestibulares são bem mais fáceis, mas antigamente era um suplício passar! Eu lembro que passei entre os 1.000 candidados, dos mais de 10.000 mil que concorriam a 100 vagas. Bom, até que não fui mal, mas ainda bem que não passei. No ano seguinte, fiz a inscrição sozinho, novamente para a UFRJ, e entrei para Letras. Porém, para o meu desespero, minha avó falecera... e eu fiquei nas mãos de meu avô e madrinha, que nunca me quiseram por perto, e eu ainda precisava dizer que havia passado para Letras.
Não vou contar tudo mas, em resumo, precisei buscar meu próprio caminho, porque os maus-tratos que eu recebera de minha mãe foram triplicados, e meu corpo não aguentaria por muito tempo mais uma saraivada de desesperança nas mãos de diferentes algozes. A única saída era: estudar o máximo possível, trabalhar concomitantemente, e ir embora.
Foi nessa época que encontrei o caminho do professorado e, também, dos escritos de contos e crônicas. Eu tive meus primeiros contatos mais profundos com a literatura de Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Caio Fernando Abreu, Lya Luft, Carolina Nabuco, José Saramago, Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, Virginia Woolf, Anton Tchekhov, Lygia Fagundes Telles, J. D. Salinger, Nikolai Gógol, Samuel Becket, dentre tantos outros, e fui encontrando meu viés literário.
Esse viés literário levou-me a perceber que eu não gosto de falar sobre o que é externo, mas, sim, sobre o que é interno, o que é mais profundo no ser humano e, por isso, a literatura é mais difícil de ser lida. Há um termo para esse tipo de literatura que é literatura psicológica, ou romance psicológico, em que se explora mais a psiqué do que o ambiente em si. A preocupação maior é com a personagem e não com o local em que se encontra. Não que o lugar não possua seu posto dentro dessa literatura, mas é pano de fundo, e não o destaque, ou seja, a figura (linguagem técnica literária: figura e fundo).
Quando se trata de poesia, conto e crônica, é assim que escrevo. As palavras chegam em um turbilhão; a história aparece na minha cabeça a qualquer momento, até mesmo dormindo. Por vezes, eu acordo no meio da noite e preciso pegar um caderno ou o celular e gravar o que estava se passando para, depois, escrever o que vem como sentimento. Ponho a minha cola nas palavras desconexas e a leitura se faz coerente para mim. Contudo, essa é a mágica da literatura psicológica: quem lê precisa aplicar aquilo que foi escrito em alguma parte de sua vida pregressa, atual ou futura (caso faça planos). Infelizmente, eu não sei fazer poesia, conto ou crônica do tipo:
Como escrevo na areia
Eu escreveria seu nome
No sangue da minha veia
Eu não sei escrever assim! Acho bonito quem consegue, mas eu não sei. Meus trabalhos são considerados escuros, sombrios e enigmáticos, mas é o meu jeito de escrever e, creiam-me, eu não escolhi escrever desse jeito, apenas vem dessa forma. Surge em mim violentamente, em pedaços, em cacos, em flashes, e eu vou simplesmente pintando o quadro psicológico da coisa toda, mas, por vezes, sem mesmo entender o que estou fazendo. Talvez por isso eu entenda tão bem Clarice Lispector e, se ela fosse viva, eu queria estar perto dela o tempo inteiro, calado, só olhando para ela. Incrível o que ela disse um dia para uma fã sua sobre um livro de sua autoria. A história é que essa fã fez-lhe uma visita para demonstrar todo apreço e ligação que possuía com sua literatura e, depois de muita conversa, a visitante afirmou que adorou o que ela quis dizer na obra A Paixão Segundo G. H.. Clarice ficou perplexa, talvez de felicidade, e disse à visitante: que bom que conseguiu entender alguma coisa, porque, até hoje, eu mesma não consegui entender nada do que escrevi. Eu amei isso! Essa é a minha essência! A autora não entendeu, mas provavelmente ela escreveu para que alguém entendesse! Tudo o que é necessário para isso está dentro de cada leitor. Basta querer ler de verdade! Viu uma poesia, uma crônica, ou um conto, leia sem amarras. Leia para você mesmo, não para dizer quem o autor é, ou o que ele quis dizer. Leia para você! O que essa arte diz a você? Se não diz nada, tudo bem, mas, pelo menos, leia. Pode ser uma surpresa, pode não ser, enfim... é isso que faço.
Quando houve a exposição de sua vida no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (hoje em reformas por conta do incêndio, e eu quase morri junto quando vi pela televisão), peguei o ônibus em Petrópolis, cheguei cedinho lá e abri todas aquelas gavetas e vi, foi a primeira coisa que vi, na primeira gaveta, seus documentos originais, carteira de identidade, CPF, seus escritos, tudo! Vocês não têm ideia do que senti! Eu tive de me sentar em algum lugar e me recompor, porque o choro era convulsivo!
Em uma entrevista que ela deu, e ela pedira que fosse veiculada apenas após seu falecimento, o entrevistador pergunta-lhe como é ser escritora, ou algo assim, e ela magistralmente responde: eu nunca fui escritora, eu apenas escrevo porque eu gosto. E, então, minha professora do 3º ano do segundo grau tinha toda a razão! Ou seja, o que ela disse faz todo o sentido para mim: ela percebera que eu GOSTO de escrever; não sou escritor tampouco e, por isso, não me entenderiam. Para mim, literatura é assim, é um gostar de escrever não por satisfação própria, mas para que alguém, em algum momento, entenda o que eu digo, que bata fundo no coração para soltar um caramba, passei por isso, ou nossa, tô emocionado (perdão por colocar no masculino, mas também é uma característica de minha literatura, meu "eu lírico" é quase sempre masculino). Mas, pessoas que gostam de escrever com o meu estilo são mal-interpretadas, não por maldade, mas por falta de vontade na leitura, ou porque não gostem mesmo deste tipo de coisa muito psicológica demais, com apenas uma personagem, muito existencial... Enfim, acabamos morrendo na obscuridade. Quando escrevo, percebo a beleza no que é prolixo, na complexidade do pensamento, na demanda da interpretação. Fujo do "óbvio", não pela falta de beleza, mas porque é simplesmente "óbvio". Concordo que da mesmice sempre advém alguma novidade (Guimarães Rosa), mas o sol brilha para todos, até mesmo para os que trazem novidades fora da "mesmice" diária e cansativa (Ariano Suassuna). Amo Ariano Suassuna!
Talvez por isso não possua leitores mais assíduos. Talvez por isso não seja popular, mas é assim que sou, é assim que serei sempre. Com relação aos [Diários de Bordo] que publico, essa é minha "veia" cômica, minha visão um pouco mais lúdica do mundo, mas não me interesso muito por Diários, escrevo-os por simples vontade de rir um pouco e, acreditem, eu rio muito dos Diários. Talvez seja este o momento em que escrevo apenas para mim mesmo, e eu gosto. Entretanto, se quiserem saber quem realmente é @manandezo, ele se esconde em suas poesias, contos e crônicas, enredado na psicologia de cada um de vocês. Ao perceberem que publiquei uma [Crônica], [Conto] ou [Poesia], ficarei bastante feliz com a visita e a leitura de cada apreciador da arte da palavra e da literatura psicológica que tanto gosto de preconizar.
As gavetas de Clarice Lispector no Museu da Língua Portuguesa. Se não me falha a memória, foi em 2007.
Imagens: arquivo pessoal, última imagem
Abraços, @manandezo
Publicação de 23 de janeiro de 2018