Decidi iniciar minha contribuição ao #dicionariodamusicabrasil com uma das bandas que mais me marcou em todos esses anos de busca musical: Quintal de Clorofila.
Entre todas as bandas que descobri, uma me causou poderosa impressão. Essa banda é Quintal de Clorofila. Portanto falarei, em primeiro lugar, um pouco da história desse duo de folk psicodélico gaúcho. Formado pelos irmãos Dimitri e Negrende Arbo, a banda conseguiu, depois de alguns anos de música, lançar seu único álbum no ano de 1983. Esse álbum era O Mistério dos Quintais. Para as letras, os irmãos contaram com os poemas do pai Antônio Carlos Arbo, que era exímio poeta. Os irmãos de Santa Maria, Rio Grande do Sul, criaram uma sonoridade única que misturava influências das mais diversas; em alguns momentos, era um folk melancólico e em outros viajava pelo mundo tomando influências andinas, ciganas e ainda transitava entre o imaginário nórdico (como na música Drakkars). Além das influências tão variadas, a banda também utilizou "instrumentos" incomuns como galões de gasolina e serrotes, demonstrando uma versatilidade e um gênio criativo de marca maior.
Há algo que me fascina nessas bandas de um álbum só. Elas nunca soam para mim como bandas que tiveram de algum modo seu potencial desperdiçado por algum acaso do tempo que as impediu de desdobrar todo seu potencial artístico. Nesses especialíssimos casos, é como se todo o potencial mágico e criativo da banda ficasse ali, comprimido, reunido, misticamente exprimindo tudo que poderia naquele único trabalho. Parece que essa exclusividade artística reveste as músicas de valor, tornando cada uma em um valor absoluto com o poder de marcar aqueles que a ouvem. Quintal de Clorofila sempre foi um exemplo maior dessa impressão particular.
Dentro do meu olhar, o único álbum de Quintal de Clorofila, O Mistério dos Quintais, poderia ser lido como o primeiro neofolk brasileiro. Para quem não sabe, o neofolk é um gênero que se formou entre os anos 80 e 90 com bandas como Death in June e Sol Invictus. O gênero trata de dar uma roupagem nova à música folk, criando um estilo mais obscuro, muitas vezes misturando melodias simples no violão com ambientação feita com trompetes, sax e outros instrumentos. O neofolk é um gênero muito abrangente, mas, sem dúvidas, O Mistério dos Quintais cumpre mais que o mínimo de requisitos para ser acolhido nesse gênero que nascera depois de seu lançamento.
As músicas são todas encantadoras, repletas de mistério e letras muito bem construídas. Cantam sobre o amor, sobre os pinheiros, as alamedas e o orvalho da madrugada, falam de ciganos, vikings, da ausência e da nostalgia que é presente nos quintais muito antigos. As almas de disposição mais melancólica hão de se deliciar com as composições. Aliás, nostalgia é uma palavra que pode ser bem associada à banda. Em mim as músicas sempre tiveram o efeito de fazer mergulhar num mundo que não vivi, fazendo-me imaginar como devia ser a inspiração daquelas noites dos anos 70 e 80, quando as coisas eram tão diferentes. Quantos poetas tão talentosos quantos os irmãos Arbo jamais foram ouvidos e naquele tempo caminhavam sob o sereno de uma noite fria musicalizando versos tão ricos e profundos numa época em que não havia as facilidades da internet? Como era criar um mundo sonoro tão forte e imaginativo numa realidade em que as influências não podiam chegar a nós tão facilmente como hoje? Sem dúvidas essas canções me ofertam uma nostalgia de um tempo que não vivi.
Como sou um grande fã, é inevitável falar das impressões que essas canções causam no meu íntimo. O álbum inicia com As Alamedas (link para o youtube abaixo), que leva o ouvinte a uma imagem natural falando das alamedas, dos pinheirais e da lua. O ritmo marcado pelo violão e o que parece ser um bandolim, assim como o solo de sax, cria um ambiente noturno pensativo e profundo, algo que nos transporta a determinadas paisagens e tonalidade afetiva.
Gotas de Seresta é outro marco do álbum. Pessoalmente, faz-me voltar às noites de 2010 e 2011, quando por vezes passava madrugadas boêmias com amigos e retornava ao lar ouvindo-a quando já amanhecia e tudo adquiria aquela coloração azulada enquanto caía o orvalho do novo dia. Musicalmente, é uma canção mais densa que remete à solidão.
Balada da Ausência é uma das minhas prediletas. Sua letra fala, obviamente, da ausência. Musicalmente, mistura os violões com flauta, teclado e cantos de pássaros. A voz na música é outro destaque. Porém, a meu ver, nada se compara com a letra, que farei questão de compartilhar com vocês aqui. É uma poesia profunda, triste e pensativa. Com essa música, retorno a antigos amores, às distâncias intransponíveis que muitos deles impunham; era uma das faixas que me acompanhavam nas minhas caminhadas solitárias que se destinavam à tentativa de dissipar um pouco dos tormentos que o amor tantas vezes impõe sobre nós.
Quando vem a primavera
Coração floresce, renasce o amor
Caminhando entre as flores
Sinto o abandono, tristeza e dor
Como podem essas cores
Essas belas flores, embassar meus olhos
Como pode esta beleza me ferir tão fundo
Me trazer tristeza
Melhor seria um outono
Se das folhas mortas brotassem teus passos
E no fim desta alameda
Numa tarde cinza eu te encontrasse
O álbum termina com "O Mistério dos Quintais", música de delicado valor nostálgico. Ela nos remete aos quintais da infância, ao mundo mágico da tenra idade, do tempo em que a alma não vive só em nós, mas que a sentimos nas coisas que nos cercam. Sim, há uma alma que vive ali, presa no fundo dos quintais de casas muito antigas, como diz a música, e essa é a alma da infância que também vive cativa em nós mesmos. A essa alma O Mistério dos Quintais é capaz de despertar por alguns instantes. O violão, os pássaros, o poema declamado, o som antigo da gravação, a mística flauta ressoando no conjunto, tudo isso encerra um álbum perfeito que, mesmo sendo tão bom musicalmente, acaba pertencendo mais ao sentir que ao abstrair.
No meu gosto musical, Quintal de Clorofila repousa na mais alta estima. É uma banda que vai além do som. É nostalgia e é mágica em forma de música. Não só um marco silencioso no ainda não inaugurado neofolk austral, mas uma banda que deve permanecer na memória para cativar o espírito de muitos outros apreciadores da música de qualidade nas gerações vindouras. Essa é uma banda que vale a pena ouvir e, se sua sonoridade verdadeiramente agradá-los, cultivá-la ao longo dos anos, fazendo de suas músicas uma companhia para os momentos mais introspectivos.